30 de out. de 2012

Te amo!

Talvez daqui vinte anos eu ainda faça as mesmas coisas que sempre fiz.
E daqui vinte anos, talvez você ainda esteja do meu lado e ao meu lado.
Mesmo que tudo possa ser ou parecer temporário, a minha intenção é que o fluir de tudo isso seja eterno, dando a real sensação de que o tempo parou para nós na melhor fase de nossas vidas: juntos.
Daqui pra frente se eu me parecer muito com você, desculpe o plágio, mas foi proposital. Porque a melhor sensação do amor não é sentir o outro, mas sentir-se o outro. Porque a única verdade em tudo isso é que "os semelhantes se atraem".
E serei semelhante sem ser igual, serei verdadeiro sem ser piegas, serei forte sem ser rude, serei tudo sem ser demasiado, serei frágil sem me quebrar, e serei seu sem deixar de ser eu!
Te amo!!!

29 de out. de 2012

Pseudo-poema #07

O que eu poderia ser é o que sou
Mas sou também aquilo que desejo ser
O gosto que eu tenho
Talvez doce ou amargo
Talvez seco ou suave
É o gosto de tudo que gosto.
O que eu posso, cabe dentro do meu limite
O que eu quero vai além de mim
O que eu odeio e o que eu amo
É que define o meu estado.
E tudo que está fora de mim
Existe mesmo na minha ausência
E permanece além da minha existência.

25 de out. de 2012

O gato

Marina se deliciava com o gato de Alice. Era pura delicadeza, porque embora não gostasse de gatos, gostava de Alice. O gato, que sabia do não gostar de Marina, sob a condição de uma delicadeza falsa, se sentia molestado, e apressava-se em descer daquele colo mal emprestado.
Alice se deixava levar pelos gestos de Marina, e o fazia por pura delicadeza, porque embora não gostasse muito de Marina, amava seu gato. E o gato, que sabia do gostar de Alice, sob a condição de um amor incondicional, se matinha calado enquanto saltava para o chão.
E o gato vivia sua desventura diariamente, entre a farsa e o amor, entre o colo e o chão; no limite das coisas que um gato pode aturar.

DO OUTRO LADO

Entre a pupila ligeiramente dilatada e a noção que seu cérebro tinha de que havia luz do lado de fora da janela, existiam infinitas partículas suspensas no ar marcando o caminho para que seu olhar não se perdesse. Só isso, no entanto, não era suficiente para que ele prestasse atenção ao que se desenrolava do outro lado da vida. Com o olhar fixo na luz que incidia sobre seu rosto, uma sombra pouco definida do corpo de Marília se movia em direção contrária ao seu desejo.
Ele queria estar do outro lado. Do lado em que pudesse escolher. Onde Marília pudesse estar. Mas ele não sabia – ou não entendia – ou não podia perceber que não era ele quem criava as regras da sua existência. Era Marília!
Marília era ele do outro lado, e isso ele não podia ver através da pupila ligeiramente dilatada, nem pela noção que seu cérebro fazia de que havia uma outra vida dentro de si.
Seu olhar – não o seu cérebro, mas o seu olhar mesmo, fixava a sombra em sua retina e mesmo quando dormia podia ver Marília. Isso era tudo que ele podia ver, ou podia querer, ou podia ter! Mas ele tinha demais. Porque tinha Marília, porque tinha em sua vontade uma vontade que não era dele e nem era dela também. E o que ele não sabia era que a noção que seu cérebro fazia de uma outra vida não o tiraria dali – não o levaria até Marília.
Porque ele era Marília e ela era ele, ao mesmo tempo em que as partículas suspensas no ar eram o caminho até o outro lado da vida.
O que ele queria – se fosse de sua vontade – era estar lá,do outro lado.
A fina camada de desejos dispersos que compunham a sua vontade e a vontade de Marília não era suficiente para que a luz que havia no ambiente fizesse a ponte entre os dois lados. Ele era desejo. Ela era a vontade-inversa. Ele era o desespero. Ela era a falta-de-escolha. Ele era a luz. Ela era a sombra. Era a sombra em sua retina. Era a sombra do desejo. Ela era na verdade o outro lado. Mas ele também era. Não! ele era os dois lados, as duas vontades e a sombra.

24 de out. de 2012

BULA HERMÉTICA

Alguém disse certa vez que esquerdo é ímpar e direito é par, assim como pode perceber o ar que se curvava para não atingir a vela, evitando assim apagar a nítida impressão de que a chuva tinha lá suas razões para lavar a alma daqueles que perderam a secura da monotonia da fluência das coisas na filosofia de Heráclito.

Talvez porque seja verdade o que se diz de esquerdo e direito, par e ímpar, a falta de oxigênio sufoque a vela, desinformando a luz que explica para os olhos o que ele vê. Talvez seja verdade também que o filósofo seja um louco monótono tentando explicar a cor que os olhos do daltônico evita, que o latido do cão é o grito da mudez do paralelepípedo irregular, que aquilo que chamamos céu na verdade não tem nome para o deus que fugiu sem deixar vestígios.

Alguém disse certa vez que hermética é a bula que não explica o que sente, mas que sente o inexplicável poder do peso e da massa das coisas – a gravidade da órbita dos olhos alheios -, embora tudo seja ilusão e que o mundo não é uma esfera e sim uma folha habitada pelas traças humanas. Talvez as palavras não mostrem o que as letras querem nos dizer, e que ímpar é o que se pede para depois e par o que se deixou de ter por falta de motivo.

E assim, a única verdade é que você e eu não estamos em lugares diferentes, estamos aqui e agora dentro deste texto, no espírito que se entrega pacificamente ao seu destino de estar ao mesmo tempo dos dois lados da vida.

PARALELEPÍPEDOS

Thalitas são uvas e vestem roxo, Cristinas são mangas e vestem abóbora. Thalitas são cheias e esperam um amor impossível, Cristinas são rasas e divergem das opiniões alheias. Mas ambas são aurélios ambulantes, em casa, no restaurante. Seus amigos são brigadeiros, alguns de chocolate, outros de leite, não se vestem como as duas, nem são aurélios, mas procuram em suas vidas algo que os una em um ponto não raro, porque todos estão no mesmo barco em direção a algo que diverge e separa formando uma união estável entre todos.
Cristinas são mães, Thalitas são órfãs, se olham e se esperam, e se unem como mãe e filha, e não são mais Thalitas e Cristinas, são Lauras.
Lauras são morangos e são completas, tem amigos e se vestem de azul. O céu as espera um dia, porque todas são filhas de Maria.
Amigos são cajus e se comportam como tal. Aceitam seu destino e só mudam de posição se o sol estiver em suas janelas.
Todos somos laranjas, e esperamos que no varal exista uma roupa que nos sirva, porque o que nos serve nos completa. Andamos a noite sem medo de que o escuro nos mostre o que só existe sem a luz. Laranjas tem sua raridade e se vestem de nuvem, laranjas que caem também alimentam. Laranjas não existem na chuva.
Todos unidos pelo mesmo barro somos marrons e úmidos, brancos e secos, somos vasos e copos, somos pratos e ossos. Somos desentendimento, e sabemos separar aquilo que nos desagrada.
Somos letras e olhos, livros e críticos, somos cestas de frutas maduras que se separam pela cor e pelo gosto, pela casca e pelo sumo. Somos todas as respostas às mesmas perguntas.
Thalitas e Cristinas são diferentes e são iguais quando nossos olhos as encontram, mas hoje não há previsão porque estamos todos juntos à espera do relógio que marcará doze e vinte e nos separará definitivamente. Somos a vagem, somos as mãos que as separam, e de hoje em adiante viveremos por nós mesmos. Não haverá mais guia, apenas a garantia de que não há partida, apenas um adeus tímido e sem segurança.
Thalitas são mudas, Cristinas são falantes, se vestem de despedida quando a hora finda.
Somos paralelepípedos irregulares, o pulso da mão que varre, a onda que bate, somos a erosão que carrega consigo um pouco da terra que acabara de abraçar.
Thalitas e Cristinas, que são Lauras na verdade, é o canto das bocas sem fala, do grito do gesto que anuncia a igualdade da diferença.
Onde estivermos, se estivermos, e estamos, sem nexo e modo, parados diante de nosso espanto, diante do nosso quarto crescente. Somos a infância dos velhos menos sábios que grisalhos.
E temos nuvens que correm nas veias e mancham de azul o céu da boca. E assim esperamos com desespero, compreender o que não compreendemos, o que não tem começo, e o que não tem fim.
Thalitas são casas, Cristinas são ruas que vão se cruzar em praças de Lauras e dar sentido à palavra que espera pela definição de si própria: adeus.
E todos os nomes e todos os sentidos escapam por entre a surdez da mente ordinária: comum.
Os Aurélios voltam na primavera para assistir o começo de tudo, e Cristinas e Thalitas se despedem dos paralelepípedos dissonantes que compõem a nossa estrutura real: a mente.

23 de out. de 2012

Manual avançado para a fabricação de nuvens


Arthur C. Stendell em seu manual[1] sobre a fabricação de nuvens, especifica algumas medidas importantes a serem tomadas quando alguém estiver disposto à produção, tanto em massa, quanto em pequena escala – talvez visando apenas um comércio local – de tipos de nuvens para comércio. Entre elas podemos citar primeiramente a importância da observação meticulosa e paciente das condições atmosféricas do local onde se pretende abrir o negócio. Sim, porque a fabricação de nuvens é regida por um órgão que não admite a troca de local do estabelecimento – querendo com isso evitar o monopólio de um único fabricante, ou pior, a guerra entre eles. É o local que determina a quantidade, forma e estrutura da nuvem a ser fabricada.
         Ainda em seu manual, na página sessenta e quatro ele explica:

  “Para que haja a formação de nuvens é necessário que parte do vapor d’água contido na atmosfera se condense, formando pequenas gotículas de água, ou solidifique, formando minúsculos cristais de gelo. A esta formação, ou aglomerado de cristais de gelo e gotículas damos o nome de nebulosidade.”[2]

         Sabe-se ainda que, neste mesmo livro[3] ele expõe os pormenores de toda a parte burocrática com relação às especificações de “nuvens para chuva” e “nuvens para simples decoração do espaço aéreo”, incluindo as coordenadas estabelecidas de sua área de abrangência e a altura, esta determinada exclusivamente para cada tipo de nuvem.
         Saber exatamente onde e como fabricar sua própria nuvem é essencial para o bom andamento do negócio. As especificações técnicas que abrangem entre outras áreas a segurança, também podem ser encontradas no livro “Normas Técnicas para a Condensação da Água para a Fabricação de Cristais de Gelo.”
         Mas não vou falar aqui da parte burocrática nem técnica, que certamente não é a que mais interessa o leitor neste momento, falarei do processo de fabricação e dos modos – particulares – do exercício da preparação.
         Se o leitor quiser se aprofundar ainda mais no tema, sugiro que leiam W.C. Scotty[4], que narra sua aventura particular com uma de suas nuvens mais famosas.
         Particularmente acho que algumas pesquisas na internet também irão ajudar no momento da escolha do tipo certo de nuvem que se quer fabricar. Alguns designs são simplesmente incríveis.
         E vejam só, pode-se inclusive, comprar um kit com cristais de gelo e canhão de 12 polegadas, ou uma incrível máquina que prepara sozinha a nebulosidade. No caso do kit, você vai precisar contratar os serviços de uma empresa que prepare a nebulosidade e a carregue até a altura ideal para seu tipo de nuvem, e claro uma licença municipal, estadual ou federal para usar o espaço aéreo no local determinado, dependendo do tipo de empresa que você tem. Empresas locais necessitam apenas de uma licença da prefeitura. Já a máquina que prepara a nebulosidade, esta sim já vem com todas as licenças para uso geral-padrão, é bem mais caro, mas dependendo do tamanho do seu negócio, vale o investimento.
         Em 1860, a fabricação de nuvens, de chuva[5] ou decorativas era um negócio pouco explorado, mas como sabemos a necessidade é a mãe das invenções, e Juan Estorero inventou e patenteou uma máquina que fabricava os cristais em 1861[6].
         Em sua casa na cidade de Charaña na divisa com o Chile, Estorero observava um céu claro – completamente azul -  e sem uma única nuvem para lhe aguçar a imaginação – como na brincadeira de criar coisas ou animais com as formas das nuvens.
         E pensou que num dia tão belo quanto aquele, as pessoas não deveriam passar seus momentos sem um ofício para a mente, e inclusive, pensou também no fato de que, sem as nuvens, o dia ficava muito mais quente que de costume, e assim, de uma necessidade e um capricho, inventou a primeira máquina de fabricar cristais de gelo condensando-os para criar nuvens. Ainda nesta época não existiam os canhões que arremessavam os cristais na atmosfera criando a nebulosidade.
         De qualquer maneira começa nesta época a fabricação de nuvens decorativas, que hoje se constitui numa arte para poucos gênios do design.
         Quanto ao aspecto: a aparência geral de uma pessoa pode indicar aos nossos olhos e sentidos se ela é agradável ou não a nós, isto também acontece com as nuvens. Quando olhamos para as cinzas sabemos que há probabilidade de chover, enquanto que se ela é totalmente branca nos traz um sensação de beleza e frescor. Então imagine que uma pessoa cinza é uma nuvem de chuva e outra bonita é uma nuvem branca. Não, não pense nada disso, isto é preconceito, nem pessoas nem nuvens merecem isso.
         Quanto à constituição: imagine um aglomerado de pessoas de mesma condição sócio-econômica ou credo por exemplo, isto se denomina uma constituição. Entre elas existem as otimistas, as pessimistas e as realistas, criando assim uma espécie de divisão de grupos. Com as nuvens acontece a mesma coisa. Existem as sólidas, as líquidas e as mistas, que embora sejam uma constituição de nuvens também estão dividas em classes. E pensando bem não é bom para as pessoas serem divididas em classes, pois isso geraria uma luta entre elas, criando uma divisão nada agradável de castas que lutariam pelo poder, constituindo assim uma dominação desigual, pois os mais equipados teriam mais vantagens que desvantagem nessa luta. Com as nuvens também não seria legal, principalmente porque um profissional do ramo não pode escolher qual tipo de nuvem é mais bonita ou agradável que outra, pois isso geraria um caos orçamentário, sem contar que órgãos federais exigem e fiscalizam a isonomia dos tipos de nuvens em todo o território nacional.
         Quanto ao estágio: a produção industrial advinda da revolução acontecida no fim do século dezenove, produziu uma espécie de explosão tecnológica e financeira no mundo, dividindo as pessoas em classe sociais cada vez mais diferenciadas, ou seja, os ricos enriqueceram muito mais, os pobres continuaram pobres e, ao invés de plantar sua própria comida, viraram empregados dela, pois o emprego em fábricas e indústrias mudou essa relação do homem com a terra e seus produtos. Evidenciou-se muito mais as diferenças das classes sociais. Com as nuvens podemos dizer – numa metáfora tardia – que essa relação é muito parecida: existem as baixas, as médias e as altas.
         Por ser tratar de uma condição de nossa mente, subjetivar as coisas é normal, e não poderíamos deixar de fazê-la com as nuvens. Assim, as baixas são as menos importantes, as médias são simpáticas e as altas são as mais belas e melhores.
         Mas deixando de lado toda essa idiossincrasia com relação à fabricação de nuvens, é pertinente dizer que vale mesmo o feeling nessas horas.
         Faço aqui um breve relato particular de como consegui produzir a minha primeira nuvem, e é claro, não posso esquecer de dizer que: se você não tem uma mente criativa que fixe a priori a idéia da nuvem dentro de sua cabeça antes mesmo de sua confecção, não há porque nem sentido em começar a fabricá-la fisicamente.
         Um estado de bom humor e aceitação já é um bom começo, os estágios mais avançados requerem um nível de concentração que você só encontrará na meditação, na yoga etc...
         Faça, logo que acordar e ainda em sua cama, uma prece dirigida a qualquer coisa que você creia, não importa se é física ou não, isto serve para liberar a endorfina[7] acumulada durante o sono. Isto serve para ligar o motor da mente criativa. Em seguida, com os pés descalços pressione os dedos contra o chão, um de cada vez, apoiando a mão na cama para ter uma pressão mais uniforme. Esse exercício serve para endurecer as pontas dos dedos – vai que hoje seu carro quebrou e terá de ir trabalhar de ônibus.
         Veja bem, não há motivo para estresse. Lembre-se de que estás prestes a criar sua primeira nuvem e o equilíbrio emocional é muito importante.
         Arranje um horário em que não será incomodado por ninguém e deite com as costas contra o chão, fixe seu olhar no céu num ponto em que não haja uma nuvem já pronta, pense em como a sua relação com o mundo à sua volta determina suas atitudes, pense na relação de perda e ganho com você mesmo, sinta-se parte da paisagem.
         Viu? Não é tão difícil assim. Seguindo estes passos, uma imagem será criada em sua mente, então transfira essa imagem para o papel em palavras, diga como está se sentindo. Então espere o dia seguinte e, novamente quando acordar, pegue este papel e crie a imagem de uma nuvem baseado no texto.
         Pronto, você acaba de criar sua primeira nuvem.
         Para saber como criar tempestades, leia meu mais novo livro “Criando tempestades em onze passos”, da editora costa-prado.


[1] Stendell, A.C. - How Do I Make My First Cloud. São Paulo, 1989. ECP/BR
[2] Stendell, A.C. - How Do I Make My First Cloud. São Paulo, 1989. ECP/BR, p. 64

[3] idem, p.98
[4] Scotty, W.C. – My favorite Cloud. NY, 1994 – Sem tradução para o português.
[5] É necessário explicar que, para a fabricação de nuvens de chuva, o processo é bem mais complicado que apenas nuvens para decoração. Existe todo um aparato químico que não entrarei em detalhes nesta obra, fixando-me apenas na arte de fabricar nuvens decorativas.
[6] “Rain Machine”. Para encontrar mais sobre o inventor acesse HTTP://www.rainmachineestorero.com.bo
[7] Qualquer de certos peptídeos que ocorrem no cérebro, na hipófise e outros tecidos de vertebrados, capazes de produzir ação antálgica prolongada, e cujos efeitos se assemelham aos da morfina.


Guia Prático do Atravessador de Ruas


"Este guia dedica-se exclusivamente a pedestres experientes, maiores de idade e em pleno exercício de suas faculdades físicas e mentais"

Atravessar: verbo transitivo direto, significa passar para o outro lado, transpor um determinado espaço, locomover-se de um ponto ao outro – de uma margem a outra. Pedestre: aquele que anda a pé.

“Step by step the walker build your way.”
Whirwin Thompson – AAW[1]




[1] “De pé em pé o pedestre faz o seu caminho.” - Whirwin Thompson é médico chefe do Departamento Americano para a Saúde do Pedestre


Atravessar ruas está para o pé como beijar está para a boca: fundamental!
Atravessamos a rua para chegar ao outro lado, e não há nada mais intrigante do que se perguntar sobre isso. Não há nada que nos faça abdicar de poder transgredir a realidade e a lógica e mergulhar no universo do subjetivo quando falamos do ato de atravessar ruas.
Antes de mais nada, cada uma das duas extremidades inferiores, uma em cada membro inferior, constituídas de tarso, metatarso, e falanges dos pododáctilos, respectivas articulações, e partes moles que recobrem as ósseas, são chamadas de pé. Os pés servem para nos levar de um lugar ao outro, sustentar o peso do nosso corpo – e às vezes o corpo de outro também -, correr, pular, nadar, apoiar e – o motivo à priori de nossa discussão: atravessar ruas.


Assim, para atravessar uma rua faça da seguinte maneira:
Ao se deparar com a borda da calçada, coloque-se a uma distância entre quinze e vinte e cinco centímetros (margem de segurança) da rua e apóie com firmeza todo o conjunto de ossos e articulações, ou seja, o seus pés deverão estar bem firmes. Em seguida e sem pressa mova a cabeça em ambas as direções – para a direita e para a esquerda – a fim de se certificar de que é seguro imprimir movimento ao seu desejo de transpor a distância que separa você do outro lado. Para o destro o pé direito, para o canhoto o pé esquerdo – não importa qual deles se moverá primeiro -, o importante é que o movimento seja sincronizado.
Já nos primeiros passos pode-se sentir a pressão do solo sob nossos pés, de como o calçado se molda ao terreno para proporcionar o conforto necessário para que façamos a caminhada com segurança e destreza.
Os joelhos são de grande importância também nesse processo, pois compreendem a articulação da coxa com as pernas e todas as partes moles que a circundam. É fundamental manter sempre a saúde dos joelhos em dia.
Durante o intervalo de tempo entre os dois momentos - do lado em que se estava para o lado em que se quer estar  - podemos articular nosso pensamento, cantar uma canção qualquer, apreciar um espaço de terreno que se abrange num lance de vista, entre outras coisas. É claro que tudo isto só pode ser feito se não houver movimento na rua – que você a priori já se certificou quando olhou para os dois lados antes de atravessá-la.
E finalmente, atravessar ruas é um exercício necessário, obrigatório, e inerente ao modo de vida do homus erectus. Se até as galinhas atravessam a rua, por que nós não faríamos isso?
A partir de hoje você dará um novo valor a este simples e imperceptível ato humano, mas extremamente importante e fundamental: o verbo transitivo direto que abre caminho entre dois pontos distintos: o lado de cá e o lado de lá!

22 de out. de 2012

Amanhã...

Sobre a mesa, dentro da caixa de entrada, a carta de demissão e um pensamento recorrente. Ela estava lá há anos, porque ele ainda não estava pronto, e a espera era como se fosse um plano, ou um plano B.
Quando lhe perguntavam quando assinaria a tal carta, ele sempre respondia com um sorriso disfarçado, amanhã. E no ar, ficava a sensação de figura de linguagem, a metáfora preferida por ele.
Não havia data na carta, então, por mais que parecesse óbvio para todos que o dia pudesse não chegar mesmo, só ele, ainda via isso como algo verdadeiramente possível. E a metáfora se tornaria realidade.
Não era aposentadoria, mas sim desistência. E o que faria se desistisse?
E pensava que, se desistir era uma opção, qual era a outra?
Não era mudar de emprego, mas sim trocar aquela vida de trabalho, por uma vida de não-trabalho!
Megulharia nos livros, sua paixão?, construiria um barco e remaria ao encontro de Hemingway?, sentaria na beira da calçada e esperaria que saíssem coelhos das mangas de seu paletó?, esperaria até que a morte viesse buscá-lo e, a exemplo de Borges, o levasse para a grande biblioteca no céu, onde cabem todos os livros do mundo? Era uma ideia tentadora para ele.
E tanto pensou nisso, que tirou a carta de dentro da caixa. E todos olharam para ele sem acreditar que o dia havia chegado. E ele sorriu mais uma vez disfarçadamente. E todos viram quando ele a colocou na caixa de saída. E um grande murmúrio se instalou na sala quando ele virou as costas para todos sem se despedir. O cigarro, ainda aceso sobre a borda da mesa, marcava a madeira - era a sua assinatura!
Pela janela da sala, rostos colados no vidro olhavam a figura de um homem lá embaixo, que olhava de volta gargalhando. Finalmente havia colocado seu plano em prática. Estva livre por dentro e por fora.
E pensou que, se havia mesmo uma outra opção, com certeza não era ficar!
Alguns correram para tomar sua mesa e sentar-se ao lado da janela, outros, ainda perplexos, olhavam o homem se fastando, caminhando em direção ao infinito, passos calmos e firmes.


19 de out. de 2012

Viagem insólita

Fui descendo devagarzinho, começando pela nuca – ela tinha uma nuca branca e de um aroma agradabilíssimo. Fiquei ali parado por um instante embriagado por aquele perfume natural do seu corpo. Seus pelos ralos e quase transparentes faziam cócegas em mim, me foi muito difícil passar por eles sem me perder em devaneios.
            Fui descendo bem devagar, admirando a bela paisagem que seu corpo me mostrava. Com calma fui tateando o vale que se formava entre as duas montanhas brancas que desenhavam seus seios perfeitos. Fiquei por um instante paralisado na dúvida de qual escalar primeiro. Por várias vezes subi e desci aquelas montanhas, e descansei no vale perfumado de seu corpo de mulher.
            De repente me pareceu que a distância entre aquelas montanhas e o oásis que se desvelava para mim nunca chegaria. Aquele corpo perfeito se assemelhava a um campo de trigo, o movimento de seu abdome me fez acreditar que estava perdido em mar revolto, mas mesmo assim valia a pena estar onde eu estava.
            Contornei seu sexo tentando não me entregar à curiosidade de desvendar aquele mundo tão feminino. Atingi sua virilha ainda tonto com a possibilidade de que ela tentasse me tirar dali, mas nada aconteceu, e prossegui.
            Passei bem devagar por suas coxas, e de repente, ela se virou bruscamente me oferecendo outras terras a serem exploradas. Seu glúteo assemelhava-se a uma lua cheia em noite estrelada, e pude ver e sentir cada milímetro, tocar cada minúscula penugem que compunham e enfeitavam meu caminho.
            Ainda atordoado por aquela experiência maravilhosa, desci bem devagar por detrás de suas pernas. Agora o caminho se mostrava como se fosse um lençol de seda, um momento de descanso para o viajante exausto de tantas aventuras.
            Toquei com cuidado seus calcanhares perfeitos e desci as lombadas da sola de seus pés. Eu havia chegado ao final de minha jornada querendo ser o homem perfeito para aquela mulher, mas eu sou apenas uma simples formiga!

Cientista anda de trás para frente para provar que veio do futuro

O cientista holandês Peter Hanbouwy chegou esta manhã em seu laboratório e espantou seus colegas de trabalho. Ele caminhava de costas e falava tudo ao contrário. Sem entender o que se passava, seus colegas demoraram para perceber que o cientista havia acabado de criar uma experiência inovadora e espetacular ao mesmo tempo. Havia voltado no tempo, ou seja, ao caminhar para trás e falar ao contrário ele estava provando que veio do futuro, mesmo que este futuro fosse muito breve. Acabava assim, de criar uma máquina do tempo: seu próprio corpo. Em entrevista coletiva, ele disse:

- No momento em que eu ando para trás e falo ao contrário, ao invés de ir, eu volto; ao invés de dizer, eu desdigo. Depois, coloco tudo isso no computador e vejo o lugar onde eu iria estar e as palavras que eu iria dizer.

A comunidade científica está em espanto total. Muitos cientistas estão aplicando a mesma experiência em si próprios. Alguns prometeram andar para trás por doze anos, para refazer cálculos errados que haviam feito, ou até mesmo consertar algumas coisas que deram errado em suas vidas.
A maior revista científica do planeta: SCIENTIF REVERTY SOCIETY AND RESARCH OF PARADOXYS, disponibilizará em suas páginas, todas as etapas da experiência para que pessoas comuns também possam reverter suas vidas.

Assista AQUI o video no U-Tube!

16 de out. de 2012

Fui eu

Causou espanto a morte de Tadeu. Porque Tadeu era moço certo e trabalhador.
Causou espanto nos policiais que conheciam Tadeu antes mesmo da delegacia se instalar no bairro.
Causou espanto no dono do jornal, que nunca havia noticiado um crime na cidade.
Causou espanto a vida breve que se ia sem aviso nem despedida. Sem ao menos um último gole no bar do Perito.
Foi na segunda, de manhã, antes do almoço, com sol entre nuvens, carros enfileirados no sinal.
Morreu tão cedo, que chegou ao céu sem saber que lá desembarcava.
E causou espanto até em São Pedro, que nem havia aberto o livro de entrada. Os portões, ainda fechados.
E tadeu não se deu conta, pois não sabia o que era a morte ainda, porque nunca havia morrido antes.
Mas Tadeu aprende rápido, e logo percebeu que não veria Marina naquele dia. Preocupou-se com a falta de notícia suas, e quis voltar só pra dizer "até logo".
E todos mediram esforços pra achar o assassino, encontrar a prova, condenar um homem, fazer justiça.
Mas nada foi encontrado nos dias seguintes, nem mancha de sangue onde Tadeu caiu morto.
Causou espanto a falta de tudo que explicasse a sua partida logo na segunda, antes do almoço, com sol entre nuvens e carros enfileirados no sinal.
Mas não se morre apenas de morte? Não é a morte o antônimo da vida? Assim como o reflexo no espelho, os lados estão sempre lá até que um se mostre ao outro.
Mas a morte de Tadeu não causa espanto em mim, porque fui eu quem o matou.

Dejavu

Veio de Ulisses a primeira impressão sobre Clarisse, e veio de Clarisse a primeira palavra da manhã.
E Clarice notou que em Ulisses, seus cabelos acordaram mais brancos que a noite passada.
Noites brancas, eram as noites de lua cheia, quando deixavam-se perder na sensação da falta do tempo e olhavam o céu juntos, medindo a temperatura das estrelas no céu.
Ele pensou em levantar-se, ignorando o frio da manhã, e sentir o carpete sob os pés. Clarisse, em abrigo sob o pesado cobertor, desistiu de advertí-lo sobre isso e apenas esperou que seu espírito move-se seu corpo através do tempo e do espaço, e lhe colocasse em movimento.
Notaram-se no olhar que estavam partindo, feito rastro de nave prateada acima das nuvens, alto, lá no plano azul, deixando o rastro branco, marcando o caminho e dividindo o céu ao meio.
E a impressão de Ulisses, de que Clarice estava mais jovem que a noite mais branca, o deixou tranquilo. E Clarisse, na impressão de que tudo aquilo não passava de uma porta que se tinha que abrir, abriu.
E já era noite branca, com milhares de temperaturas piscando no céu.
E Ulisses despediu-se de Clarice, mas só até o próximo amanhecer, com cabelos negros e ralos, sem entender que o que tinha nas mãos era a vida, e que durante um tempo, teria de esperar.
E despediu-se Clarisse, mas só até a próxima estrela vermelha surgir, e a noite branca lembrar aos dois que já houve outras noites como aquela.

15 de out. de 2012

No fim daquele dia

Havia uma ilusão permanente na cabeça de Ulisses de que o dia nunca terminaria.
Essa ilusão prendia-o naquele momento infinito, e permanecia o sol lá em cima, imóvel e à espera.
E tudo mais que havia, ou que pudesse existir naquele dia, dependia da vontade de Ulisses, e descansava o crepúsculo lá do outro lado, imóvel e à espera.
E o tempo, temendo que o céu desabasse por culpa de sua vontade de mover-se, pernanecia cautelosamente imóvel e à espera.
E a mente silenciosa de Ulisses, acreditando na ilusão de que o dia não terminaria, pensava nisso imóvel e à espera.
E Ulisses acreditava que o sol, o crepúsculo, o tempo, e sua mente, manipulavam a ilusão de que o dia nunca terminaria, e tranquilamente pernacia imóvel e à espera.
E nada se movia, e em vão todos esperavam e sem motivos que o dia terminasse.
Mas o dia, preso à ilusão de Ulisses, à imobilidade do sol e do crepúsculo, ao medo do tempo, e à dúvida da mente, permaneceu indefinidamente imóvel e à espera.

9 de out. de 2012

EMBRIAGUEZ

Ao longe, e ainda que um tanto abafado pelo som do vento que beijava-lhe a face, podia ouvir Alicia cantando. Cantava a mesma canção de quando se conheceram há uma semana, exatamente naquele mesmo lugar porque passava agora, exatamente naquela mesma hora, exatamente com o mesmo sol a brilhar com a mesma intensidade e cor; parecia-lhe que era vítima de um dejavú.
A silhueta da menina que se aproximava ao longe tomava contornos de mulher. Ele apressou o passo, queria estar à sombra da mangueira assim que ela o percebesse.  E assim aconteceu, e porque não poderia ser diferente, não foi!
Seus olhos não se despregavam da imagem de Alicia, e como havia acontecido antes, arrepiaram-se os dois no despreparo de seus corações. A brisa abrandou-se definitivamente à espera do próximo passo que ambos dariam.
Ai, ai, suspirou a menina de pele branca e sardas no rosto. Era ainda nova como um bezerro, mas disfarçava a idade com batom vermelho nos lábios e sombra carregada nos olhos. Só não disfarçava mesmo era a ousadia com que se assanhava quando via Jordão. E sorriu para ele, porque tinha que sorrir, e deitou-se impaciente ao seu redor tirando de dentro do decote do vestido de chita um lenço de renda. E pondo-se de novo a abanar-se, sorriu enxugando o colo dos seios e o rosto.
“Bom dia!”, disse ele puxando a voz do fundo de suas entranhas e disfarçando o que não tinha disfarce. “Tem sombra pra dois?”, perguntou ela, e deitou-se de bruços debaixo da árvore a balançar os pés descalços, a causar-lhe um tremor quase constrangedor, a umedecer-lhe os lábios. Ai, ai, suspirou novamente olhando-o de soslaio, sabia o que queria. Ele?, ele também sabia sem saber. E a brisa pôs-se a assoviar uma canção do vento, fugindo sorrateiramente e abandonando os dois a si mesmos. “Tem sim!”, respondeu, engolindo seco.
Ela então, sentou-se encostando-se no tronco da árvore, espreguiçando-se e esticando os braços e as pernas, mexendo os pequeninos dedos dos pés como que a tocar piano com eles. Ele impacientou-se de tal maneira que não pode evitar comentar sua beleza. Ela surpreendida(?) e lisonjeada, aceitou o galanteio. Ele aguardava o próximo movimento dela de olhos bem abertos, e ela disse-lhe ao pé do ouvido com os olhos bem fechados: “Quem encontrou quem?” Ele não respondeu de imediato, ficara pasmo, de boca aberta a dar motivo para engolir moscas. Seus olhos, presos no decote do vestido de Alicia, que tornou a guardar o lenço entre os seios. “Quem encontrou quem?”, tornou a perguntar. Mas Jordão se perdera em algum momento entre o som de sua voz e a visão daquele corpo quase imaculado. Ela, se quisesse, podia permitir-lhe tudo, ele embriagado, num primeiro instante pedia-lhe sem precisar dizer nos lábios, pois seus olhos a devoravam sem culpa.
“Larga-te aí e te darei toda a sombra que quiseres, toda sombra que mereceres.”
Naturalmente que ela desejasse o que já sabia poder ter, porque não lhe faltavam atributos para consegui-lo, não lhe faltava palavras na boca, e quase sempre um pouco de insensatez nos modos. Jordão em hora perigosa, não criara precaução, nem modos para essas coisas, embora para os dois tudo fosse uma estranha e incontrolável novidade.
Como conjugar o verbo amar sem perceber a diferença do jogo do amor?
O amor é essa embriaguez que lhe toma a direção sorrateiramente, que está onde pode muito bem fazer falta, que tira o sono e engana a fé.
Ali, à sombra da mangueira, os dois se mantinham acordados e tesos, preguiçosos e vastos ao mesmo tempo. Ela lhe prometera meditação, devaneio, equívoco; prometia-lhe apenas perder-se - o que lhe agradava -, porque era homem, porque era um menino. Ela deixou-se deitar em seu peito morno, e quando respirou profundamente ele soube a resposta: “Deus nos encontrou!”
A própria vida os havia encontrado, mais de uma vez. Ela sorriu e desmanchou a ansiosa expectativa criada atirando-se em seus braços. Ele com os lábios secos, procurou sua boca, deixando sua respiração suspensa: entregaram-se com força.
E foi desse modo, de uma rima entre dois corpos, de um encontro marcado pelo destino, que Alicia e Jordão amaram-se de embriagarem-se um do outro, até que aquele dia descansasse dos dois.
Ao longe, como se se ouvisse um murmúrio, a brisa assoviava uma canção balançando as folhas da mangueira e avisando que a hora do jantar se aproximava.
“É quase noite.”, disse Jordão, e levantaram-se apressadamente. Alicia pôs-se a rir e a abanar-se, teve que apoiar-se no tronco da árvore para não cair, ajeitou o vestido de chita, tirou mais uma vez o lenço de dentro do decote.
“Toma, que tu mereces.”, e entregou-o a Jordão.
Ele pareceu se perder no movimento, e declarou: “Te vejo semana que vem!”

8 de out. de 2012

O Diabo em sua poltrona de couro vermelho

O Diabo em sua poltrona de couro vermelho pensava, pensava e pensava...e tanto pensou que pensava em deixar que seus pensamentos não fossem apenas pensamentos, mas que fossem como eram os contos dos maiores escritores que já passaram por aquelas terras geladas.

Em sua confortável poltrona, colocava a mão no queixo e deixava-se transportar para o mundo das letras e das entidades literárias que lhe cabia, por afinidade, ser protagonistas de sua estória.

Garcia era seu cavaleiro ganhando guerras, Benitez pairava no ar a sua frente, feito um gigantesco bólido, carregando as escrituras apócrifas, Agatha surgia sorrateiramente por debaixo da densa camada de gelo e névoa, segurando uma adaga, como se fosse apunhalá-lo, Carol deixando escapar por entre os dedos um coelho negro com garras enormes, que avança sobre uma de suas criaturas nojentas, dilascerando-a em um só golpe.
E o Diabo pensava que tudo cabia num mesmo lugar, e pensando assim, soltava grandes gargalhadas sinistras, sentado em sua poltrona de couro vermelho.

Seus pensamentos eram quase como um espesso manto que caía sobre si mesmo, devorando-o e cuspindo-o de volta. E assim, sonhava com a platéia aplaudindo sua inteligência e vontade, seu desejo materializado. E todos eles: Tolstói, Gogol, Verne, Hugo, Balzac, Camões com seus dois grandes olhos verdes, Roberto Prado de paletó vermelho e chapéu panamá, encostado numa das paredes geladas, Goethe e, finalmente, Homero, aplaudindo-o, entre grandes grades de gelo e fogo.

E a vontade desejava que seus pensamentos não fossem apenas uma história contada para si mesmo. E deitado em sua poltrona de couro vermelho, o Diabo sonhava e sonhava, e sonhando sonhou que era o Diabo sentado em uma confortável poltrona de couro, e que podia tudo. E viveu assim seus últimos dias no "Olimpo Hospital Psiquiátrico e Casa de Recuperação para Disturbios Bipolares".

Texto adaptado #04

A imagem abaixo foi tirada durante o salto do paraquedista John Smith na sexta-feira do dia 5 último. Alguns detalhes não estão muito nítidos, mas ainda dá pra ver o borrão iluminado passando ao lado do paraquedista.
Ontem pela manhã, antes de decidir saltar, ainda se lembrava da última vez que o fez, esquecera mesmo foi porque havia decidio não saltar mais. Obviamente esqueceu-se disso e saltou.
Em terra, pessoas divergiram a respeito do fenômeno, o que fez o delegado da região encerrar as investigações por conta das histórias sem sentido de algumas pessoas. Nem mesmo na acariação foi podido perceber qualquer coerência nos depoimentos.
Mas, voltando à imagem, nota-se que a direção do objeto é inversalmente proporcional ao sentido do salto e direção do vento naquela altitude. Por este fato, resume-se (segundo  um especialista que não quis gravar entrevista nem divulgar sua imagem), trata-se de uma montagem muito bem feita.
A única pergunta que resta de tudo isso é: Onde está o paraquedista que não chegou ao chão?

Veja o video AQUI, e tire suas próprias conclusões.

4 de out. de 2012

Atrás do vidro

Todas as noites seu corpo longilíneo contorce-se languidamente em movimentos sensuais e ritmados. Ela desce as mãos delicadamente até as coxas, aperta os seios, vira-se de um lado para o outro mostrando as costas nuas. Ela é o design perfeito de um corpo de mulher. Seus grandes olhos azuis hipnotizam a presa que, indefesa atrás do vidro, entrega-se aos seus encantos.

A cada noite vivida, em cada instante, em cada pensamento, em cada sorriso, em cada abrir e fechar das cortinas, ela vende muito mais que seu corpo escultural: vende sua alma, sua dignidade e sua fé. Uma diva, atriz, rainha, ninfa e escrava.

Todas as noites, seu corpo longilíneo contorce-se languidamente diante do vidro que lhe impede de ver aqueles que se saciam diante de sua performance. São predadores anônimos que pagam pelo desejo de ver a presa sem poder aprisioná-la. Todas as noites, ela pede que seja a última, ela implora através de gestos e gemidos, mas do outro lado, homens de mãos cheias e corações vazios contorcem-se pelo prazer imediato e fugaz. Ela continua seus movimentos sensuais e ritmados, desce as mãos até seu sexo, geme até que ela mesma não conte mais quantas vezes gemeu naquela noite.

Homens em fila indiana, a cada 5 minutos, vão trocando de lugar num ritmo que lembra um carrossel. Esse é o ritmo em que ela está acostumada a viver. Nesse encontro de duas realidades diferentes, nada mais faz sentido agora. Os dois lados são prisioneiros um do outro. Uma dependência psíquica, química - um coquetel de prazer fácil e barato. Um prazer falso, vítima de uma falsa entrega, de um adormecer incongruente. Atrás do vidro, a noite é seu cárcere. Cansada daquela maratona insana, ela adormece por um instante. Sonha com a liberdade, mas um cliente mais afoito esmurra o vidro para que ela acorde e lhe dê prazer:

- “E aí puta, eu tô pagando, levanta e geme gostoso.”

Nada mais faz sentido quando não damos sentido a nada. Cada momento guardado se torna uma grande pedra que incomoda e machuca. Nada mais fazia sentido para aqueles homens do que ver todas as noites aquele corpo perfeito serpenteando diante de seus olhos. Nada mais fazia sentido para ela quando o que ela mais queria era não ser ignorada nem desprezada. E nessas voltas que a vida dá, nada faz mais sentido do que se sentir vivo.

2 de out. de 2012

Caligrafia

...ontem a conheci, mas tinha uma letra estranha.
...como assim?
...uma letra estranha, não gostei!
...era bonita?
...não reparei, só na letra. Não gostei nenhum pouco.
...vai ver eram os dedos.
...dedos?
...dos pés, os dedos dos pés dizem muito sobre uma pessoa.
...inclusive que terá um dia uma letra horrível?
...talvez!
...pior que isso só o sotaque. Ah!, aquele sotaque me irritou, se bem que eu só percebi no banho.
...vocês tomaram banho juntos?
...tomei sozinho, mas fiquei com aquele sotaque na cabeça, e a letra é claro.
...mas se ela sabe se despedir é o que importa.
...sim!, mas foi por telefone.
...a cobrar?
...ainda bem que não foi por carta.
...não se faz mais isso hoje em dia.
...a despedida foi longa.
...como deveria?
...como poderia ser. Talvez nenhum dos dois tivesse outra alternativa.
...nem eu teria.
...o que importa mesmo é que não vou mais olhar para aquela letra horrível que ela tem.
...ela escreve?
...tem um computador e uma agenda eletrônica.
...isso conta?
...pra escrever?, espero que sim, seria a única maneira de avaliar sua escrita, ou seus pés, sei lá!
...vai criar coragem pra deixar o tempo rolar e...
...seus cabelos.
...o quê?
...seus cabelos eram de um estranho brilho.
...você...
...não, não teria coragem de tocar naqueles cabelos. Ela poderia achar que eu não entendi o que pretendia dizer com aquelas palavras mal escritas.
...também, com aquela letra?
...horrível.
...bom, uns vão outros passam e ninguém permanece.
...essa é a vida meu amigo!
...é!
...que vai fazer amanhã?
...pagar uma aula de caligrafia pra ela!!!

Sem tradução

De sorte que eu não havia pedido camarão. Lá da cozinha dava pra ouvir o Chef gritando, batendo com a cabeça nas panelas e arranhando algo entre francês e português ao mesmo tempo :

"La crevette estragô!!"

No que eu imediatamente retruquei em bom português:

"Eu não pedi escargot, caralho!!!

Ou talvez devesse ter pedido. Acabei saindo de lá sem jantar! 

Concerto n.º 5 - uma autobiografia NÃO autorizada

Eu me lembro bem daquele dia. Roberto Prado sentou-se em frente à máquina de escrever, e levantando as mãos como quem se prepara para tocar o "conserto para piano n.º 5", começou a datilografar sua própria biografia NÃO autorizada.
Digitava sem olhar para o teclado. Foi, durante muito tempo, funcionário público, antes de ser escritor famoso e cheio de manias. Uma delas, a de fumar um "Dona Flor double corona", enquanto escrevia suas histórias fantásticas. Digitava, fumava e falava comigo como se suas mãos fossem independentes de seu corpo - trabalhavam freneticamente na máquina, enquanto me contava algumas ideias que pretendia colocar no texto. Eu, a minha maneira, sempre achei que uma biografia NÃO autorizada venderia muito mais do que a oficial, autorizada pelo autor e escrita pelas mãos de um jornalista com boa fama e necessidade de dinheiro.
É claro que ele também sabia disso, e não deixaria essa oportunidade passar. Não que precisasse de fama ou de dinheiro, mas ele precisava escrever. E antes do "Dona Flor" queimar completamente, já havia terminado o capítulo inicial do livro. Perguntei como ele terminaria sua autobiografia NÃO autorizada; no que ele me respondeu, segurando o charuto numa das mãos e arrancando a folha da máquina de escrever com a outra:
- Deixarei inacabada. Nada melhor para os negócios. Deixa um grande suspense no ar, a conta no banco mais gorda, e os fãs mais ansiosos pela continuação. A expectativa é o tempero que adoça a boca e os olhos dos leitores. J. K. Rowling sabia disso, e usou muito bem essa arma. Não é nova, mas sempre funciona.
Colocou as folhas dentro de um envelope e me entregou dizendo:
- Esse não é o caítulo um. Guarde, este é o fim de tudo, e você vai publicá-lo depois de minha morte.
Voltou-se para a máquina, e quando ergueu as mãos, e eu tive certeza de que ele não datilografava, mas tocava o melhor concerto para literatura naquelas teclas.