10 de jan. de 2013

Missa das sete

A missa das sete estava cheia apesar da chuva. Ele olhou para todos do alto de seus um metro e noventa e nove de altura, tirou os óculos, apertou os olhos a fim de enxergar melhor – talvez - e suspirou profundamente colocando os óculos de volta no nariz adunco e severo. Parecia agora pronto para falar. Os sons abafados da audiência o deixava apreensivo e ansioso. Talvez devesse se retirar e não enfrentá-los ainda. Pensou que outras oportunidades não faltariam para que dissesse a todos o que todos estavam ali para ouvir. Sentiu-se ridículo naquelas roupas, mas eram roupas comuns de sua profissão – não entendia por que elas lhe pareciam tão inapropriadas naquele momento.

A umidade da manhã de domingo entrava dissonante através dos vitrais e enchia o ambiente com uma incerteza concreta. Essa incerteza também tomava conta dele que tentava esconder seu medo esfregando as mãos úmidas num pequeno lenço que tirou do punho direito da batina. Olhou fixamente para todos mais uma vez, tirou os óculos e os limpou, colocou-os novamente e apertou os olhos a fim de entender melhor – talvez – o que todos ali já sabiam: sua incapacidade de iniciar o sermão. Não só o medo, mas o ceticismo tardio que o dominava eram uma barreira quase intransponível. De certo mesmo nele apenas o desejo de não estar ali. Pensou que talvez fosse um aviso divino – ou a falta dele – que sua fé fosse colocada à prova exatamente naquele instante.

Se Deus quisesse usá-lo como seu instrumento de marketing não seria ele quem lutaria contra, mas se essa estratégia o confundia, ele mesmo se encarregaria de resolver o problema da maneira mais fácil: desistindo! Mas ele pensou que desistir de tudo não era a mesma coisa que desistir de um fim de semana no lago. Seus pensamentos quase audíveis para a assistência o interromperam como um trovão, trazendo-o de volta ao seu lugar comum. Mais uma vez olhou todos ao redor, suspirou alto, tirou e colocou novamente os óculos num gesto nervoso, pegou mais uma vez o lenço na batina, enxugou a testa, esboçou uma palavra que chamou a atenção dos fiéis. E todos esperaram alguns segundos para ouvir a palavra salvadora, ou o que fosse, mas do alto de seus quase dois metros de altura ele só pensava em como não dizê-la. Ele não se sentia digno de proferi-la.

Os sons foram aumentando à medida que o tempo passava.
Os murmúrios transformaram-se em frases quase completas, o choro da criança entediada invadiu o nave, todos se perguntaram sobre a demora. No vitral, a figura do anjo Aniel se movia tomando agora a direção do altar, e outros anjos e santos se moveram a fim de tomarem seus lugares junto aos fiéis para ouvi-lo. O coroinha entrou balançando o incenso e defumando a todos.
Tomado agora por uma vontade que não era dele, levantou os braços em direção aos ouvintes, começou a mover os lábios, pensava haver dito alguma coisa, percebeu os fonemas, pensou ouvir sua própria voz. Ele não entendia se vinha dele ou de alguma força estranha seus movimentos involuntários, mas sabia por algum motivo desconhecido que não era ele quem falava. Outros que passavam do lado de fora da igreja entraram para ouvir o sermão. Os infiéis e os céticos que riam-se de tudo na praça se sentiram tentados a entrar, e entraram também, e o ateu que dormia nos degraus acordou assustado com a possibilidade de acreditar no que ouvia. Os bancos se encheram da gente que entrava sem parar, no corredor todos se acotovelavam para ouvir uma voz que se dilatava além daquele homem incerto e descrente. Ele sabia que sem a palavra não haveria o verbo. Pensava em si e em sua missão, dominado pelo desespero mudo. O silêncio da audiência espalhava-se pelo mundo. Sem a palavra o mundo tornar-se-ia um lugar silencioso. Essa responsabilidade aumentava exponencialmente sua impotência. E na tempestade da incerteza que invadia o homem e o sacerdote, a palavra se calou.

Do alto de seus um metro e noventa e nove de altura, ele olhou para a multidão, abaixou os braços, retirou o lenço da batina e enxugou a testa pela última vez, tirou os óculos e apertou os olhos a fim de ver que o tempo havia se esgotado. O silêncio explodiu na voz dos fiéis, os anjos se foram sem olhar para trás. Ele tirou as vestes sacerdotais e seguiu pelo corredor estreito entre os bancos e a multidão. Vestia uma calça jeans e uma camisa fina de malha. Não disse uma palavra a mais, porque não se achava digno de dizer nada. Pegou a direção da estrada velha e fez caminho onde só havia dúvida. Agora sentia-se livre, revigorado, autêntico.

Na nave, o coroinha defumava as peças de prata e bebia o vinho enquanto os fiéis esperavam em vão pelo sacramento.

por: ALEXANDRE COSTA

Um comentário:

VICIADOS EM CAFÉ disse...

Muito boa Magrão, muito boa.